Vigésimo sétimo
Quando minha mãe nasceu, suponho que a cidade em que nasci era diferente. Nascemos na mesma cidade. Onde ela ainda mora, na qual já não moro há décadas.
Engraçado pensar isso: já não moro em Santos há décadas.
Minha mãe, desde que me conheço por gente, pisa na areia da praia todo dia, ou quase todo. Eu pequeno, ia também com ela. Adulto, às vezes ainda vou, quando acontece de estar por lá, nessa cidade em que nasci.
Há uma impressão curiosa que se abate sobre as gentes quando subimos ou descemos a Serra do Mar — especialmente quando descemos. A sensação de que aquele manancial de água que circunda a baixada, aquele receptáculo de espaço que desce as encostas e vai desaguar no mar, aquela porção de mundo é quase um útero. Um veículo apenas aportado. Um ventre ao pé da serra, uma grande esfera de luz na borda do mar.
Minha mãe nasceu nesse espaço. Minhas avós, embora eu esteja quase certo de que nasceram serra acima, se fizeram avós ali também, nas franjas d’água. Uma delas, minha vida inteira vivendo bem junto à quadra onde morávamos; a outra, sempre um tanto distante, mas nunca fora de alcance. Quase sempre na mesma cidade.
Há uma impressão curiosa que se abate sobre as gentes. A casa em que a vó morava é, hoje, casa de meus pais. Um dia há de ser minha e de minha irmã, diz o patrimônio. A casa em que eu menino cresci, mesmo que andarilhando um pouco pra lá e pra cá, com primos, outros avós, amigos, eu menino cresci ali naquela casa onde meu pai também cresceu e onde minha avó se fez mãe. Onde minha mãe hoje vive.
O tempo é uma coisa assim: quando chegamos a uma ponta, ele se fecha. E recomeça.
É a gestação contínua do presente, o tempo que corre. Nem passado, nem futuro: constância, e constância apenas.